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A Vênus

Por João Camilo / Jun 2018

 

“A Beleza, quando almejada pelo artista, se torna imortal e incomparável”, disse o jovem estudante de artes, motivado pelos vapores noturnos, pela meia-luz do bar e a força do álcool. Não foram bem essas palavras e confesso que, quando afirmar que alguém falou algo, acredite que tento ser o mais fiel possível ao espírito do que foi dito, na medida em que o meu bom gosto e memória permitam.

O jovem aspirante, cujo nome era Luís de Montenegro, sentou-se de maneira ridícula por conta da embriaguez, muito satisfeito com a verdade que acreditara ter proferido, pensando ver no rosto de todos os companheiros aprovação e admiração. O que não era incrível, uma vez que se encontravam tão embriagados quanto ele. Um desses presentes, Frederico Torres, um sujeito desagradável e arrogante, com certas maneiras efeminadas que não disfarçavam uma atitude de desprezo para com as mulheres do nosso grupo, a quem não reputava qualquer capacidade intelectual e imaginativa, ergueu-se e, procurando antagonismos gratuitos, disse: “Tolice, meu caro amigo! A beleza de uma mulher é comparável a qualquer obra prima que nós homens fomos capazes de produzir!”.

 

Aquele foi o estopim para uma batalha, tão trivial quanto à discussão sobre postes telefônicos que gerou uma grande guerra. Em meio aos impropérios, axiomas e ataques que se seguiram, Luís de Montenegro logrou, não por autoridade, dar a última palavra.

“Tolice e estou farto da sua fanfarronice. Qualquer mulher poderá possuir a beleza de qualquer obra de arte!”

Ao serem proferidas as últimas palavras, o bar se transformou em um campo de batalha e aqueles futuros ilustres homens de arte da nossa nobilíssima nação passaram a agir como babuínos. Bem diria o filósofo: o homem é o bobo do homem.

A verdade é que a palavra fanfarronice quando era pronunciada, imediatamente, como se assim fosse combinado, dava origem às batalhas menos verbais entre intelectuais. E assim funcionou, naquela noite, naquele bar.

Mais tarde, retornávamos para os alojamentos estudantis. Separei-me do grupo principal que já recriava os irrelevantes feitos da briga de bar e passei a seguir lado a lado com o silencioso Adolfo dos Santos. O silêncio de Adolfo não deveria ser atribuído ao álcool: esse era o estado de espírito usual dele, sempre medindo o uso das palavras, observando cuidadosamente o mundo ao redor e dizendo somente o relevante. Por tal atitude, havia desenvolvido uma fama que era uma mistura de respeito e desprezo – suas intervenções eram temidas e aguardadas pela força de sua capacidade crítica e pela mordacidade de seu temperamento racionalista. Como a caminhada fosse longa, fui tomado por uma vontade de conversar e comentei com descaso:

“Interessante dilema, não? Fico querendo saber qual dos dois estaria certo; se Luís de Montenegro ou se Frederico Torres. Pena que a briga eclodiu antes que o debate nos tivesse revelado qual dos dois teria razão.”

O efeito daquelas palavras foi instantâneo. Adolfo parou e fitou-me com uma expressão de surpresa tão bizarra que acaso fosse outra pessoa, eu teria sido incapaz de suprimir o riso.

“Não é possível que...”, começou a dizer, mas logo se recompôs, balançando a cabeça e silenciando-se.

“O quê não é possível?” insisti “você estava lá. Certamente viu o mesmo que vi e por consequente, há de concordar comigo!”

 

“Não é possível que acredite que um debate nos revele a verdade de forma mais autêntica que uma briga de bar. E o que eu vi? Dois tolos embriagados, que não conhecem o suficiente do assunto para revelarem qualquer forma de verdade. Um só conhece essas jovens sem encantos e feminilidade que encontramos na universidade e o outro só conhece a arte por meio de professores, que apenas ensinam um ofício que são incapazes de praticar!”

E fez silêncio novamente. Continuamos a caminhar, ele olhando o chão com o rosto encoberto por uma sombra e eu olhando para alto, digerindo aquelas palavras, que tomava por um insulto, afinal éramos todos nós estudantes daquela mesma instituição. Depois de muito andar, acreditei ter encontrado uma brecha naquela aparente fortaleza e respondi:

“Mas, parece-me que você acredita saber de algo que não sabemos, mesmo estando cercado como todos nós pelos mesmos muros e professores.”

Ele emitiu um grunhido característico de quando se via contrariado e respondeu:

“Na verdade, não consigo entender a razão pela qual crê que minhas experiências se resumem ao que você conhece e vê. Existe mais coisa entre esses muros que nos cercam do que a sua falta de imaginação.”

“Então vai me dizer que na sua infância e adolescência aconteceram-lhe coisas tais que você adquiriu conhecimentos que nós, homens adultos, não possuímos?”

“Na verdade, poderia fazê-lo, sem embaraço. Afinal, o acontecer e o aprender são dois atos distintos, que estão distantes no tempo e nada me impede, de fato espero que assim seja, que as minhas experiências da juventude me sirvam agora, transformadas em lembranças, aptas a deixarem-me ser um novo homem. Mas prefiro dizer-lhe que o que sei poderá ser ensinado com uma história que pode ser real e isso basta. Ocorreu comigo em uma noite fria e úmida, que não me permitia adormecer. Assim, vaguei até ver o rio. Eu vim do outro lado do rio, você bem sabe, mas havia muito desde que o havia visitado e naquele momento, parecia-me tão distante, irreal e obscuro quanto parece agora para vocês. Sim, não ignoro que muitos vêem a minha personalidade como sendo a típica personalidade estranha do outro lado, mas posso assegurar que quando atravessei o rio, deixei para trás toda forma de peculiaridade que por ventura possuísse e desenvolvi outras novas, mais condizentes com o lado de cá. O que me permitiu provar que não existem diferenças entre os lados, apenas entre os homens que são sempre diferentes, tal como sou diferente de você. Mas vejo pela sua face incrédula e devo dizer hilária, que duvida dessa minha teoria, o que talvez demonstre, afinal, que tem certa sensatez. Por ser tão sensato, tenho pena de você e mesmo que não acredite, assim como Bernard Shaw acreditava, que por ser o caminho do inferno cheio de boas intenções, os bem-intencionados encham os abismos, devo dizer que aqueles que abandonaram no caminho as boas intenções é que terminaram por cair em desgraça. Que essas mesmas boas intenções sirvam como degraus para que os coitados possam abandonar o inferno! Assim, por considerá-lo com certa estima, prosseguirei com a minha história! Decidi atravessar o rio novamente para visitar esse novo mundo, que é o mundo no qual vivi a minha juventude. Lá chegando, já podia sentir a diferença. Os ares me enchiam com a vontade de encontrar não sabia bem o quê, e tal contradição não me detinha, ao contrário, impelia-me a sair em uma busca, não cega, mas imprevisível. Não havia caminho que não houvesse ignorado em favor de bosques e não houve abismos que não tivesse saltado às cegas. Confiando que o método utilizado levar-me-ia até algum lugar, continuei até que encontrei, em meio a arvores cuja antiguidade era irrefutável, uma casa luxuosa e erma, que parecia estar destinada à quietude e isolamento. Na frente de tal casa encontrava-se uma mulher. Ela me viu, mas não demonstrou qualquer sinal de medo. No rosto, apresentou um sorriso agradável e confiante. Era a mulher mais bela que já vi e não serei tolo em tentar descrevê-la com justiça, basta dizer que por pouco não me postei de joelhos, desejando-a e adorando-a. Ela acolheu-me com segurança, tranquilidade e casualidade, pois é assim que funciona do outro lado do rio. Ela era a minha Vênus e aquele título era-lhe mais propício, pois aquela mulher não tinha ambos os braços, tal como a famosa estátua de Milo. Tal fato não lhe diminuía em nada a beleza, antes, realçava-a, criando um ar de dignidade e majestade que nenhum artista saberia reproduzir. Pois então, posso dizer que conheci uma mulher reunindo em si a beleza das grandes obras de arte e posso dizer que nenhuma delas é maior do que a outra. Ao contrário, tratam-se da mesma coisa, apenas são diferentes o criador e o meio pela qual se manifestaram.”

Adolfo terminou aquele relato e voltou a se calar, visivelmente inalterado após tamanho esforço inesperado. Aquilo, enfim, estava cheio de incoerências e deixava uma boa parte inconclusa. Percebi tal coisa naquela mesma noite e fui até ele, acordando-o. Relutante e sonolento, ele concordou em responder qualquer pergunta que fosse feita, desde que eu aceitasse que aquela seria a única pergunta e que o deixaria em paz.

Eu tinha apenas uma oportunidade para demonstrar, de uma vez por todas, a farsa daquela história. Depois de pensar bastante disse:

“Posso não ser um Édipo, mas creio que sou capaz de com só uma pergunta findar com essa ficção, criada por você apenas com o fim de demonstrar a inutilidade de um debate. Percebe o quão inverossímil sua história é? Como seria possível que uma mulher bela perdesse os braços da mesma maneira que a estátua? É acreditar demais no improvável.”

 Ele me olhou durante um tempo, já completamente desperto e disse desanimado, “É essa a sua questão? Tantas outras para serem feitas... Saber como e por que retornei e a deixei, mas não, prefere tentar definir o que é irreal mesmo sendo incapaz de definir o que é real em primeiro lugar. Mas, como foi combinado, darei uma resposta e mesmo não tendo me comprometido a dar uma resposta verdadeira, essa lhe servirá.”

“Eu não me importava com o passado dela. Bastava-me saber que existia. Mas segundo ela, chegaria um dia no qual eu deveria saber a resposta e assim ela me contou: Quando mais jovem, tinha ambos os braços, eram perfeitos, mas não era bela. Aquilo me incomodava, até que uma noite fiz os rituais necessários e Aquelas que foram me responderam. Pedi-lhes beleza, elas me avisaram do preço, talvez alto demais, para me ensinar virtude e humildade. Mas ergui os meus braços e disse-lhes para fazer com eles o que bem entendessem. E o trato foi cumprido, quando os meus braços foram arrancados por dentes frios e afiados, tornei-me bela, a mais bela. Essa é a resposta.”

E dizendo aquilo ele fechou a porta encerrando as memórias naquele dia.

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