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Aplauso Solitário

Por Otávio Oliveira / Jan 2018

Noite e ouro. Esta era sempre a impressão que ele tinha ao ir ao Theatro Municipal. Os brilhos das linhas que enfeitavam as bordas da arquitetura, douradas, emprestavam um certo ar de graça e antiguidade, misturando-se com a noite: ar, riqueza e antiguidade. Quase como se o lugar invocasse aquele velho hábito que tinha de possuir lembranças que não viveu, em um tempo que não nasceu.

 

A comoção que era ao entrar nos espaços onde as cadeiras vermelhas se dispunham o fazia lembrar de que era humano. Gente. Muita gente. Velhos, novos, bebês. Senhores e senhoras, homens e mulheres, todos com suas falas: grossas, finas, altas ou zangadas. Alguns corpinhos deliciosos chamavam a atenção, um lábio mais vermelho, uma pele mais pálida, um abdômen mais torneado. Uma pele mais brilhante. O espetáculo de modos e emoções era um lembrete de que ele mesmo fazia parte daquilo: tão humano, zangado e feliz quanto todos os outros. E, quem sabe, também um corpinho delicioso para alguns olhares interessados que nunca conseguia captar.

 

Eis que se senta na poltrona de vermelho aveludado. Passa-se tempo. Apitos. E, por fim, o espetáculo começa. Mas antes que a atração principal se inicie, outra precisa terminar. Afinal, ainda está para ser feito o palco em que se passam, ao mesmo tempo, dois espetáculos, cada qual muito diferente um do outro. Acontece que, não por acaso, aquela gente que se amontoava e andava para sentar-se aos bancos, de repente, quando as luzes se apagam e as cortinas do palco lá embaixo se abrem, desaparece. Este espetáculo que o faz lembrar que é humano simplesmente some: burburinhos são calados, os corpinhos deliciosos somem na meia luz, os lábios rosados e macios se apagam e nenhum olhar é captado. Encerra-se o eros cotidiano e a agitação carnal; inicia-se, no palco lá embaixo, a dança e a música concebida pelo espíritos elevados.

 

O prelúdio é entediante. Brilhoso como quase tudo, com o cenário insignificante lá atrás. Personagens e falas igualmente insignificantes. Pois ele tem o péssimo hábito de ver no início das coisas a inutilidade da falta da paixão. Nenhum orgasmo se faz no início da cópula, apenas em seu meio ou no derradeiro fim. A fome não se sacia na primeira garfada, tal qual não lava-se o corpo sujo nas primeiras gotas da ducha ou nas primeiras espumas do sabonete. Portanto, pensava, os inícios são inúteis em satisfazer os fins pelos quais foram escolhidos. Mas como chegar ao fim sem o meio?

 

A peça segue, com árias e mais árias. Pausas. Nota que o músico da celesta se confunde e corre para alcançar a batuta do maestro com rubatos um tanto quanto rudes. O enredo no entanto é agradável: é uma tragédia de amor e paixão, onde as  filhas de ninfas afundam-se nos prazeres com os filhos de faunos. Fáunulos e ninfetas — para citar o Nabokov.

 

Eis que uma das filhas chama-lhe a atenção. E por um momento o faz lembrar-se da humanidade que ficou perdida ao ter seu espetáculo silenciado pelas luzes amenas. Cabelos curtos que nem chegam aos ombros, olhos castanhos e claros. Pele branca e quadris largos.

Ela canta. Sua voz é agradável, fina e doce. Cheia de uma curiosidade típica dos mais jovens, com um certo brilho no olhar e um sorriso que, parece, recusa-se a revelar as sombras que tenta esconder. Era como se as notas que ela canta não viessem do fundo de seu coração, mas sim do momento que vive, ali, no palco, no enredo. Não ousando formular as perguntas que vêm do coração, ela as calava perguntando coisas que vinham da superfície da existência.

 

Ele a observa de longe. Ele lá em cima no balcão nobre, na parte lateral; ela lá embaixo, a cantar, ignorando a existência do público e dele, tal qual não fosse ela uma atriz, mas sim a própria filha da ninfa que interpreta. Lá do alto ele vê tudo o que ela não consegue: o fosso da orquestra que dita o tom das emoções; os instrumentistas que erram a partitura; o maestro, feliz e cansado ao mesmo tempo, escondido, oculto, torcendo para que tudo dê certo. Vê as luzes do teto que iluminam o cenário; o plástico do cenário. E, é claro, o público: cabeças escuras e cheias de cabelo.

 

Ela, no entanto, tão mergulhada na cena, ignora tudo o mais. Não sabe que a orquestra logo abaixo do palco lhe dá o tom dos sentimentos; não vê o maestro, atarefado, torcendo igualmente para que a cantora se encaixe tanto quanto possa nos moldes previstos nas partituras. Ela vê árvore e grama. Ele vê plástico e motivos pintados.

 

Mas, acima de tudo, ele vê, ou melhor, ele sabe que ela não é a filha da ninfa que interpreta. Ele sabe que quando a última nota for tocada pelos violinos e a última sílaba da ária sair dos lábios dela, todo aquele universo mágico de fadas e duendes irá desfazer-se como argila crua na chuva. E ela deixará de ser aquele ser sublime que ele acompanhou desde o início de todo o espetáculo, e passará a ser a jovem, humana e cantora, de voz fina e mistérios, de quem ele nada sabe. Pois tudo o que ela mostrou foi o que ele pôde ver: a trajetória naquele espetáculo.

 

Quem dera pudesse ver o que mais há além! Como ela toma o seu café da manhã? Torradas e manteiga? Será que gosta de geléia? Será que ao menos acorda pelas manhãs para tomar café? Será ela tão dócil, misteriosa, atraente e luzidia quanto à filha da ninfa que interpretou?

 

Será que ela se espreguiça quando acorda? Qual será o pensamento que se passa em sua cabeça todos os dias? Quanto tempo duram os seus banhos? Quem serão as suas companhias? Qual será o tipo de gente que a agrada? Estaria ela com alguém? Estaria ela amando?

 

A peça acaba. O último violino toca a última nota e a última voz resfolega o último tema. Acabado este espetáculo a semiluz fica mais evidente e as cortinas sobem, com todos os atores e atrizes a curvarem-se em agradecimento aos aplausos.

 

Ele levanta-se e surpreende-se com duas coisas: não precisou dos aplausos sadios da multidão para lembrar-lhe da humanidade que sempre o escapa durante as sessões teatrais. Pois aquela filha da ninfa não o deixou esquecer, nem por um segundo, da alma latente que em seu peito bate. E não viu, por entre o elenco, a moça que o encantara, talvez para sempre.

 

Chocou-se, no entanto, quando as cortinas desceram e subiram, logo após. E lá estava ela, a moça, a filha da ninfa, solitária, para receber solitariamente os aplausos do público. Uma pena, no entanto, que ninguém notara sua ausência e todos já saíam do teatro após prestar seus respeitos ao elenco. E ela ficou no palco, sem a companhia daqueles que com ela encenaram, sem a companhia do público que encantou-se — ou não — com seu desempenho.

 

Mal sabia ela, porém, que lá no alto, no invisível e escuro alto, de onde tudo podia ver, ele permanecia. E por mais que ele solitariamente aplaudisse e solitariamente gritasse bravo! bravo! a moça, em prantos, não o ouvia. Pois o silêncio do público ausente era mais triste do que os gritos e gestos apaixonados de um bobo sozinho, que de forma vã, inútil e cega, crê que sua apreciação única e solitária poderá amparar as lágrimas daquela que deseja os aplausos de outros.

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