INTRODUÇÃO
- Gustavo Campello
- 19 de set. de 2024
- 3 min de leitura

Já faz 1438 dias que estou aqui, engraçado que comece este ensaio meio que pelo fim desta jornada, durante os últimos anos jamais me passou pela cabeça escrever as coisas que passei por aqui: minhas percepções, experiências e frustrações. Penso que em alguns meses estarei de volta a minha casa, de volta a minha vida, de volta a minha terra com a minha gente. Este pensamento me tranquiliza, não posso dizer que tive uma boa vida aqui, pois não acho nem que dê para considerar que eu tenha vivido algo aqui, a vida em si foi inexistente, respirava e só. Pairei pelos locais como um mero observador, sem vida, um espectro deslocado da realidade, existindo apenas.
Voltando do trabalho pela estrada Sherwood Way South vi que um cavalo cagou no caminho já há uma semana, bem embaixo de uma árvore que faz sombra pelo poste de luz, o pequeno monte de estrume acaba ficando escondido em um ponto cego por um truque de iluminação. O sol já não está mais nascendo antes das cinco da manhã, então é preciso ficar atento para não passar com a bicicleta em cima da bosta. Isto não vai ser limpo, o monte vai se deteriorar pouco a pouco, no inverno o gelo irá conservá-lo e vai levar quase um ano para que aquilo vire uma pequena porção de terra imperceptível para quem passa, eu sei porque já vi acontecer antes. Tento ter os olhos atentos aos detalhes, faz quase um mês que um monte semelhante sumiu por completo.
Não sei exatamente por onde começar, só sei que não será pelo começo, talvez eu só fale do começo no final de toda a reflexão. Passei os últimos três anos querendo voltar a me forçar a escrever algo semanal, tenho perdido a habilidade da escrita, tenho perdido a habilidade cerebral, tenho lido menos, tenho escrito praticamente nada, tenho trabalhado por muito tempo 60 horas semanais, passo meu tempo livre deitado descansando o corpo assistindo algum filme, bons filmes é verdade, e tenho perdido completamente minhas habilidades sociais, isso é importante dizer. Cada vez mais sirvo menos para viver em sociedade.
Como isto é uma introdução, nada mais justo que eu situe o local, pelo menos, para que o leitor não se sinta tão perdido. A pequena cidade de Sutton in Ashfield tem uma população com menos de 50mil pessoas e já foi uma das meninas dos olhos da Inglaterra, por ser se não a maior, uma das maiores cidades de mineração do país, e é devido a isto que ainda tem uma boa infraestrutura em comparação a outras cidades do mesmo porte. Com o fechamento da mina em 1989 a cidade simplesmente perdeu a função de existir, foi praticamente abandonada em vários dos sentidos que esta palavra possa ter de conotação. Suas propriedades perderam muito valor e a cidade hoje é habitada por párias, não em um bom sentido, minha vizinhança é composta por sua maioria de drogados, pessoas com deficiência mental ou imigrantes em situações complicadas. Lógico que há vizinhanças melhores pela cidade, mas aí fica fora do meu orçamento. Mas a cidade é conhecida pelo substantivo abandono. É esta palavra que melhor a define.
A palavra me consome, sinto como se eu houvesse abandonado tudo também, penso se essa atmosfera tenha algo de infeccioso que consome nosso estado mental. Penso em uma vida que abandonei, alguém que eu fui e não sou mais, em uma família que me resta a esperança de que ainda possuo, minha casa e meu chão, o vento quente e a comida boa. Os amigos. A mesa do boteco com a cerveja gelada em cima.
Está tarde, ou no meu caso está cedo e preciso dormir. Em algumas horas devo receber o técnico da internet ou talvez ele nem venha. Alguém cortou a fiação da fibra ótica pelo simples fato de ser um escroto babaca. Foi a terceira vez. Viva o europeu civilizado e bem educado, não é mesmo?
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